Enquanto depositava o olhar sobre o pedaço de mármore de formato circular, onde estava gravado o número da morada, Miguel Matsinhe, num gesto quase maquinal, retirava do largo bolso da camisa um cartão -de - visita. Arregalou os olhos e fitou demoradamente o cartão-de-visita que já se encontrava na sua mão, como que querendo certificar de que se tratava do mesmo número. Jamais se enganaria na morada, sabia com toda a certeza possível que era aquele o lugar que procurava. Tinha memorizado aquele número há dois meses, exactamente na ocasião em que Luís Sitóe o convidara a fazer-lhe uma visita em seu escritório. O recurso ao cartão-de-visita tinha sido, sem dúvida, um acto irreflectido, um sinal do nervosismo que o apoquentava naquele instante, 1001 é o número do escritório de Luís Sitóe. Era um edifício de dois andares, cuja arquitectura indiciava a época em que havia sido erguido, o tempo colonial; contudo, os retoques e a pintura inscreviam-no no âmbito dos mais imponentes edifícios da Avenida Mártires da Machava, na cidade de Maputo. O quintal dispunha de um majestoso jardim, cuja beleza se devia em grande medida ao contraste do alegre colorido das flores, de variadas espécies e variados tamanhos, com o verde de distintas tonalidades. O doce aroma exalado pelo jardim refrescava com altivez a atmosfera daquele quintal e arredores. Miguel Matsinhe deliciava-se com aquele fantastico espectáculo de cores e aromas cuja vista só era possível graças aos intervalos nas grades que vedavam o edifício.
Do ponto onde se encontrava era possível nao so avistar o agente de segurança que se encontrava sentado por baixo da laje da varanda mas também ver que a porta estava entreaberta, facto que o convidou a dispensar o uso da campainha; ora, exactamente no momento em que ia empurrar a porta para entrar, uma vaga hesitação, que quase o impelia a desistir da visita a Luís Sitóe, apossou-se do seu espírito.
Impávido e silencioso procurava em vão a resposta para aquela inquietação. Entretanto, de súbito, dos seus lábios brotou um sorriso espontâneo e quase imperceptível que se fazia acompanhar de uma torrente de lembranças que alienar-lhe-iam, por alguns segundos, da turbulenta realidade material. Entre muitas outras recordações visualizava, precisamente, o afectuoso abraço que antecedera o momento em que Luís Sitóe o entregaria o cartão-de-visita, poreem, repentinamente, esse momento de profunda introspecção foi interrompido pelo som estridente e ensurdecedor causado pelas buzinadelas de uma meia dúzia de automobilistas a beira de um ataque de nervos, que protestava contra uma condutora que conversando ao telemóvel não se dava conta de que o semáforo activara a “luz verde”; Foi um autêntico caos porque a distracção daquela condutora-telefonista causava a intransitabilidade naquela e em mais outras duas ou três avenidas adjacentes.
Embora breves, as doces reminiscências tinham provocado um óptimo efeito em Miguel. O seu semblante encontrava-se, agora, visivelmente mais alegre, a feição sombria causada pela anterior sensação de hesitação dava lugar a um aspecto mais jovial e agradável. Era, contudo, nos olhos que se localizava a suprema prova da regeneração do seu estado de espírito, como que num passe de mágica, no lugar da luz ténue e mórbida os olhos passaram a comportar um brilho cintilante que fazia lembrar o baile das estrelas no céu escuro das noites de verão.
Miguel olhou novamente para a porta e pensou: “Se ele por iniciativa própria me tinha convidado a aparecer por aqui, porque havia de sustentar qualquer receio?”. Já seguro do que devia fazer, abriu calmamente a porta que dava para o interior da morada, sorrindo levemente caminhava vagarosamente em direcção ao agente de segurança que o vendo aproximar-se levantou-se de imediato, e como que contagiado por qualquer energia irradiada por Miguel, deu por sí a ostentar por entre os lábios o mais cordial sorriso.
— Muito boa tarde meu senhor! — Disse Miguel num tom brando e melódico depois de entrelaçar distraidamente às mãos.
— Boa tarde obrigado! — Respondeu o agente de segurança.
— Gostava de falar com o Sr. Luís Sitóe — Disse Miguel.
— Peço o seu Bilhete de Identidade por favor — Disse o agente de segurança, olhando para o enorme livro aberto que estava por cima da mesa que lhe servia de secretaria.
Depois de receber o Bilhete de Identidade e de terminar de registar alguma coisa no referido livro, o agente de segurança reparou na perplexidade de Miguel ao notar que ao inves de lhe ser devolvido o seu Bilhete de Identidade este era depositado numa das gavetas da mesa, ao que o agente se prontificou a esclarecer afirmando o seguinte:
— Agora o Sr. pode entrar e só na saída é que receberá o seu B.I. de volta.
Olhando ao mesmo tempo para a porta e tambem para Miguel o agente de segurança fez um gesto com a mão ao qual Miguel reagiu com largos passos em direcção à larga porta que dava acesso à sala de recepção. Já no interior da sala aspirou discretamente o cheirinho a verniz e incenso que pincelava a atmosfera delimitada pelas quatro paredes. Aquela mistura de cheiros o agradava.
Era uma sala ampla, com paredes pintadas de azul-marinho, onde para além da secretária de madeira, de cerca de meio metro com acabamentos em porcelana havia também uma poltrona azul, cor propositadamente escolhida para condizer com as paredes.
A recepcionista, que se encontrava sentada, conversava animadamente com um homem branco, que vestia um luxuoso fato de seda, curiosamente da mesma cor que a da camisa da recepcionista, cujo sotaque do português era ligeiramente estrangeirado. Certamente nao era nem mocambicano nem portugues.
Dois quadros dependurados na parede traseira, por detrás da recepcionista, congelaram sobre sí o olhar inquisitório de Miguel. Miguel Percebia com relativa facilidade que o que se encontrava mais a esquerda era uma obra do célebre Malangatana, entretanto, já sem a mesma certeza podia afirmar que o outro pertencia a Chichoro, artista de quem ele muito gostava. As dúvidas em relação à autoria do segundo quadro deixaram-no ligeiramente irritado.
Ainda ruminando sobre a questão do autor daquele fantástico quadro Miguel pôde ouvir perfeitamente a jovem recepcionista, num tom dócil e encantador, dizer o seguinte:
— Volte sempre. Sabe que o Dr. Luís tem sempre muito gosto em lhe receber.
— Não tenho qualquer dúvida — Respondeu o interlocutor da recepcionista, já de costas para ela e a caminho da porta.
Apercebendo-se que a recepcionista pusera-se a polir as unhas sem manifestar qualquer pretensão de o atender, Miguel resolveu levantar-se da poltrona onde estava sentado e aproximar-se dela. Com visível naturalidade disse:
— Boa tarde minha senhora, eu gostava de falar com o Sr. Luís!
Silenciosa como uma pedra a recepcionista apenas se limitou a levar uma das mãos para junto dos lábios, ungidos com uma estranha substância oleosa e brilhante, para soprar durante cerca de vinte segundos o pó que encobria as unhas polidas e, logo de seguida retomava, com devoção semelhante das beatas em oração, ao polimento. Mesmo diante da frigidez com sabor a afronta, Miguel conservou a mesma naturalidade que lhe era peculiar, fazendo justiça a sua alcunha de infância: Alma Grande. Miguel o Alma Grande.
Preparava-se já para repetir o pedido quando de repente um murmúrio áspero rasgou a névoa de silêncio que até então vigorava:
— Assunto! — Murmurou a recepcionista.
— O Sr. Luís é meu amigo e eu estou aqui a seu convite — Disse Miguel olhando fixamente para a recepcionista.
— Sente-se aí. Devo saber se o Dr. Luís lhe pode receber — A recepcionista proferiu estas palavras tão surda e secamente que Miguel só as percebeu mediante um grande esforço. Ela tinha dito-nas sem olhar uma única vez para ele.
Sentado na poltrona, reparou que a recepcionista tinha tirado os óculos e subitamente os traços do rosto dela pareceram-lhe tão familiares que acreditou que já a conhecia de algum lugar. Ora, mal ela colocou novamente os óculos esvaiu-se do espírito de Miguel a impressão anterior.
Entretanto, quando passavam quase vinte e cinco minutos após a chegada de Miguel, a recepcionista resolveu por fim comunicar, através do telefone, ao Dr. Luís sobre a presença de um visitante mas não passou de mera tentativa porque o Dr. Luís que naquele instante falava ao telemóvel não pôde atender àquela chamada.
Passaram-se, depois da tentativa telefónica falhada, mais vinte cinco minutos, durante os quais tinha reinado entre ambos, Miguel e a recepcionista, o mais absoluto silencio; Miguel evitava perguntas, sabia que era o melhor a fazer mediante expressiva demonstração de indelicadeza. Já farto de esperar Miguel pretendeu dizer a recepcionista que podia voltar noutro dia se Luís estivesse ocupado mas achou por bem aguardar mais um bocado. Recostou-se na poltrona e fixou na recepcionista um olhar que pendia entre ternura paternal e perplexidade, e pôs-se a pensar sobre a espantosa classe das recepcionistas. Claro que se recordava de uma e de outra que a título de excepção, no cumprimento das suas funções, pautasse por um inegável altruísmo. No entanto, podia mesmo jurar que a esmagadora maioria era maliciosa e mantinha um pacto inviolável com um diabo qualquer, pacto que dava azo a uma pseudo – irmandade entre as recepcionistas e que cuja vitalidade só era assegurada pelo abnegado azedume. E o ego? De certo que ele se nutria vergonhosamente de uma simples monodieta: Malicia. E para sentenciar o ciclo de reflexões a que se tinha remetido, não sem uma sã dose de ironia, Miguel deixou escapar dos lábios, o seguinte:
— Ah, se o Freud fosse vivo, de certeza que isto daria pano para muitas mangas.
“O Homem é um ser mau por natureza…”, lembrando-se desta frase de Maquiavel, Miguel balançava negativamente a cabeça em jeito de desaprovação da hostilidade desnecessária e gratuita da recepcionista; mas aquele menear de cabeça, na verdade, simbolizava a amarga decepção por verificar que aquela belíssima jovem abrigava em si uma alma tão imfame.
O enfado pela espera fazia crescer o seu desconforto. Olhou instintivamente para o relógio que trazia no pulso do braço esquerdo. Acabava de tomar a decisão de abortar a missão visita quando cruzou, inesperadamente, com o olhar frio e desarmante da recepcionista que balbuciou:
— Seu nome?
— Sou o Miguel Matsinhe — Respondeu Miguel.
Passaram-se poucos segundos entre aquele breve e seco diálogo e o levantar do auscultador do telefone pela recepcionista; o resultado foi o seguinte pronunciamento:
— O Sr. pode entrar. É nessa porta ai — A recepcionista apontava à porta que se encontrava ao lado da escadaria que dava acesso ao andar superior do edifício, com um ar inexplicavelmente contrariado.
Enquanto se dirigia à porta do escritório de Luís, Miguel ainda teve tempo de ver a recepcionista medir-lhe com o olhar.
Miguel entrava, finalmente, no escritório de seu amigo Luís Sitóe, que o recebera com enorme satisfação. Ali permanecera em animada conversa com o anfitrião, durante cerca de duas horas ao longo das quais, para além dos inevitáveis recuos aos tempos da escola primária que se deixavam entrecortar por lembranças das inesquecíveis brincadeiras da infância em comum, Miguel ficou a saber que Luís, agora doutorado em Economia, era um Consultor Financeiro. Depois que ambos esvaziaram os respectivos copos de “Whisky”, Miguel declinando o convite de ficar um bocado mais, efectuado por Luís, levantou-se e prometeu que voltava mais vezes. Entretanto, Luís que já se posicionara entre Miguel e a porta apressou-se a estender-lhe os longos braços ao que também ele retribuiu com o mesmo gesto. Foi um longo e emocionante abraço. Quem presenciasse aquele episódio não teria dúvidas em considerar que era a prova inequívoca de que pelo menos enquanto Miguel e Luís tivessem vida ainda haveria amizade neste mundo.
Luís agradeceu a visita e depois de abrir a porta fez um sinal que Miguel passasse primeiro, quando já se encontravam fora do escritório Luís fez uma pausa e disse:
— É sempre um prazer rever-te Miguelito. Volte num desses dias que depois levo-te a conhecer a minha actual residência.
Continuavam a andar quando Luís fez uma nova pausa mas desta vez esta tinha sido tão brusca que se podia confundir àquelas que faziam as crianças quando se assustavam com algum bicho que se atravessasse no seu caminho, logo a seguir estendeu amigavelmente o braço sobre os ombros de Miguel e o foi puxando para junto da recepcionista, que mesmo sem compreender o propósito daquele gesto levantou-se. Miguel também não compreendia.
Após olhar atentamente para a expressão estampada na face de Luís, descobriu alguns traços conhecidos. Miguel, que conhecia Luís há mais de três décadas, podia considerar-se uma das poucas pessoas que sabia interpretar com relativa facilidade os significados das variações na sua expressão facial, imediatamente reconheceu naquele olhar resplandecente os vestígios próprios de quem traz uma boa-nova, sabia que, mesmo não sendo o anúncio do fim da fome e das guerras no mundo, Luís ia dizer ou fazer algo impressionante.
Com a voz ligeiramente alterada devido ao indescritível entusiasmo Luís aprimorou o sorriso e dirigindo-se à recepcionista disse:
— Madina, este é o Miguel. A pessoa que há 28 anos atrás, antes de teres nascido, doou um dos seus rins para salvar a vida de seu pai. Sempre me disseste que teu pai nunca teve a oportunidade de apresentar-to.
Sem reparar na reacção da recepcionista, a Madina, Luís olhava agora para Miguel e ainda com o mesmo entusiasmo disse:
— Miguel esta é a Madina, filha mais nova do Jorge Langa. Ela sempre comentou comigo que queria conhecer o homem que cedeu, por generosidade, uma parte de si para que seu pai continuasse vivo.
Efectivamente, Madina, a recepcionista, sempre pediu que o pai lhe mostrasse o homem que tinha sido benevolente com ele; mas tal tinha sido impossível porque há mais de vinte anos que Miguel Matsinhe se encontrava a viver e a trabalhar em Pemba e dificilmente vinha a Maputo. O Dr. Luís, que a empregara a pedido do pai, Jorge Langa, fartava-se de dizer-lhe que tivesse calma que um dia conheceria tal homem.
Madina tinha imaginado inúmeros cenários para tão importante encontro mas certamente que nunca lhe tinha passado pela cabeça que a solenidade dessa aguardada ocasião pudesse ser substituída por uma atmosfera revestida de desencanto como agora sucedia. Por mais que se esforçasse não conseguia dizer uma única palavra, já não era por sarcasmo como há algumas horas atrás, agora era o sentido de culpa que a emudecia.
Ainda em pé, tremula e com o rosto e resto do corpo totalmente pálidos, a recepcionista tirou desajeitadamente os óculos e estes precipitaram-se em direcção ao chão, desfazendo-se totalmente devido ao impacto da queda.
Perguntava-se se não seria tarde e ridículo tentar agora ser simpática com Miguel, o homem que devolveu a oportunidade de viver a seu pai, e por assim dizer o homem que também era responsável pela sua existência. Madina, a recepcionista, percebia agora que mais do que o destino ou o acaso era ela a principal, se não a única, culpada pelo facto de um momento que devia ser absolutamente impar se ter transformado numa autêntica tragédia de se não guardar na memória.
Uma lágrima tímida caía-lhe do rosto. Um sorrisinho incompleto e fechado esvaiu-se dos grossos lábios. Luís Sitóe enterneceu-se. Miguel Matsinhe sabia bem a causa daquele sorrisinho incolor e da palidez mórbida da face e, como Alma Grande que era, disse:
— Fico muito contente por saber que me queria conhecer. É, pois, um grande prazer conhecer uma filha do meu grande amigo Jorge. Já não nos vemos há mais de vinte anos, por favor diga-lhe que estou cá, em Maputo. Não se esqueça também de mandar-lhe por mim um grande abraço, diga-lhe que é do Alma - Grande.
(Retratos da Alma Urbana)